Corpus D&G

 

O Grupo de Estudos Discurso & Gramática foi fundado no Departamento de Lingüística e Filologia da Faculdade de Letras em 1991. Seu primeiro projeto integrado, apoiado pelo CNPq, foi intitulado Iconicidade na fala e na escrita, com duração de dois anos. Nesse período, os membros do grupo D & G organizaram amostras de língua falada e escrita com informantes em cinco cidades brasileiras: Rio de Janeiro, Natal, Rio Grande, Juiz de Fora e Niterói. Quatro foram os objetivos principais que nortearam o levantamento do corpus D & G:

a) analisar o comportamento da iconicidade, através de diferentes fenômenos lingüísticos, em situações reais de uso da língua;
b) criar um banco de dados com correspondência de conteúdo entre fala e escrita, de modo a viabilizar a comparação mais rigorosa entre essas duas modalidades da língua;
c) testar em diferentes subgêneros textuais (narrativa de experiência pessoal, narrativa recontada, descrição de local, relato de procedimento e relato de opinião) o modo de codificação da informação;
d) comparar o comportamento dos canais da fala e da escrita em relação a esses subgêneros.

I. O Corpus

Cada um dos informantes produziu cinco tipos distintos de textos orais e, a partir desses, cinco textos escritos, para assim garantir a comparabilidade entre os canais falado e escrito.Em Juiz de Fora, Rio Grande e Natal, o corpus é composto por depoimentos de 20 informantes. Em Niterói, foram entrevistados 18 alunos e no Rio de Janeiro foram 93 os informantes. O maior número de depoimentos do Rio de Janeiro foi motivado pelo tamanho da cidade, com milhões de habitantes.
Os tipos de textos são:

1 – narrativa de experiência pessoal
2 – narrativa recontada
3 – descrição de local
4 – relato de procedimento
5 – relato de opinião

Com o intuito de verificar se os fenômenos investigados poderiam sofrer influência do grau de escolarização do falante, selecionamos alunos que estivessem cursando diferentes séries da escola regular, cobrindo desde o momento da alfabetização até o término do terceiro grau. Além disso, optamos por trabalhar com informantes de classe infantil na alfabetização e com informantes das séries terminais de cada segmento, isto é, quarta e oitava séries do primeiro grau, terceira série do segundo grau e último período do terceiro grau.

Os informantes distribuem-se, então, do seguinte modo:

. alunos de classe de alfabetização infantil
. alunos da 4ª série do Ensino Fundamental
. alunos da 8ª série do Ensino Fundamental
. alunos da 3ª série do Ensino Médio
. alunos do último ano do Ensino Superior

Torna-se válido ressaltar que também controlamos a variável sexo, distribuindo informantes femininos
e masculinos pelos graus de escolarização pesquisados.
A média de faixa etária dos entrevistados reflete a estreita correlação entre idade e escolaridade, como se apresenta a seguir:

. classe de alfabetização infantil – de 5 a 8 anos
. 4ª série do Ensino Fundamental – de 9 a 11anos
. 8ª série do Ensino Fundamental – de 13 a 16 anos
. 3ª série do Ensino Médio – de 18 a 20 anos
. último ano do Ensino Superior – acima de 23 anos

II. Procedimentos da coleta do material

A entrevista para a coleta dos dados é altamente estruturada, já sabendo o informante, de antemão, quais os cinco itens que irá abordar. Ele conhece, também, a finalidade da coleta oral e escrita e qual a destinação acadêmico-social da mesma. Tem garantido o seu anonimato e negocia livremente com o pesquisador os melhores horários e locais em que vai produzir seus textos.

A coleta foi feita, essencialmente, pelos bolsistas. Nessa tarefa, cada uma deles ficou encarregado de um grau de escolarização.
Iniciamos nossas atividades com o treinamento das bolsistas, organizando sessões de trabalho em que apresentamos e discutimos não só os procedimentos de coleta, mas também as dificuldades desse tipo de tarefa. Como resultado dessa etapa, organizaram-se para a coleta de dados algumas instruções visando garantir uma condição de comunicação o mais próximo possível de uma situação real e espontânea de interação. Para tanto, cada entrevistador deveria adotar os seguintes procedimentos:

1. esclarecer o informante sobre a finalidade da coleta para o projeto de pesquisa e sua destinação
acadêmica;
2. obter do informante a concordância em participar da entrevista, garantindo seu anonimato pelo uso
exclusivo de seu primeiro nome;
3. orientar o informante a respeito dos temas e questões propostos para o depoimento;
4. ser preciso e explícito quanto ao tipo de texto a ser coletado nos canais oral e escrito, utilizando
os respectivos comandos:
     a. narrativa de experiência pessoal: conte uma história tenha ocorrido com você que tenha sido interessante, triste ou alegre.
     b. narrativa recontada: conte uma história, que tenha ocorrido com alguém que você conheça, que tenha sido interessante, triste ou alegre. Solicitamos, para este tipo de texto, que fossem evitados comandos do tipo conte alguma coisa, assim como narrados filmes ou novelas que o informante tivesse visto.
     c. descrição de local: descreva, diga como é o lugar onde você mais gosta de ficar, passear ou brincar.
     d. relato de procedimento: você sabe fazer alguma coisa? o quê? conte como se faz isto.
     e. relato de opinião:
          e.1. alunos de alfabetização infantil – relacionamento afetivo (amizade e família) e pressões sociais (escola)
          e.2. alunos da 4a série do Ensino Fundamental – relacionamento afetivo (amizade e família) e pressões sociais (escola)
          e.3. alunos da 8a série do Ensino Fundamental – relacionamentos afetivos (amizade e namoro) e pressões sociais (família, escola e religião);
          e.4. alunos da 3a série do Ensino Médio – relacionamentos afetivos (amizade e namoro) e pressões sociais (família, escola, religião e preconceito);
          e.5. alunos do último período do Ensino Superior – questões nacionais (educação, economia e política).
5. escolher um lugar bem silencioso;
6. deixar o gravador ligado desde o início e durante toda a entrevista;
7. gravar no início da entrevista os dados pessoais do informante;
8. deixar 10 segundos em silêncio antes de cada entrevista;
9. ser cordial, procurar , vez por outra, dirigir-se ao informante pelo nome;
10. planejar com o informante encontros para a coleta de dados, a saber:
      1º encontro: gravação do material sonoro
2º encontro: registro escrito.
11. coletar os textos orais em uma única sessão;
12. coletar os textos escritos no máximo uma semana após a coleta do material oral, em sessões
individuais ou em grupo;
13. coletar os textos orais em sessões individuais;
14. relembrar o informante, durante a coleta dos textos escritos, sobre o que ele gravou na
modalidade oral;
15. recomeçar a coleta oral, no caso do texto produzido não estar de acordo com o padrão definido
no projeto;
16. não tornar a entrevista um interrogatório;
17. evitar as interrupções; no entanto, em qualquer momento do registro oral, todo informante pôde
solicitar interrupção de gravação, tanto para se esclarecer, com relação ao tipo de texto que estava sendo
coletado, quanto para se reorientar ou por motivo de outra natureza.
18. preencher a ficha de identificação de informante e tipo de texto coletado e o diário de campo
(anexo) para cada informante;
19. fazer um relatório de coleta para cada informante;

No que se refere à gravação, os entrevistadores estiveram presentes, registrando e monitorando todos os depoimentos. Todavia, na parte escrita, o procedimento variou conforme a escolaridade e faixa etária do informante: os alunos mais novos, principalmente da classe de alfabetização, escreveram seus textos diante das entrevistadoras; os mais velhos, após orientação das entrevistadoras, fizeram sozinhos a parte escrita, entregando-a posteriormente. Tal procedimento ocasionou grande intervalo entre as datas da coleta dos materiais sonoro e escrito em considerável parcela do corpus.
Todo material coletado passou por três fases de validação:

1. Primeira validação:

Após a coleta dos materiais oral e escrito, foram ouvidas todas as fitas e lidos os textos escritos para que, uma vez validados, se pudesse proceder à transcrição. Pautamo-nos pelos critérios gerais de transcrição adotados pelo Projeto NURC/SP, com algumas adaptações em função da especificidade de nosso material.
Apresentamos a seguir o quadro das marcações utilizadas para a versão oral das entrevistas:

OCORRÊNCIAS SINAIS EXEMPLIFICAÇÃO
     
Incompreensão de palavras ou segmentos () eu me amarro ficar ( ) olhando no espelho
     
Hipótese do que ouviu (hipótese) (hipótese) paramos (num) posto
     
Truncamento de sílaba e/ou quebra de seqüência / não/ sabe que eu não tenho… eh… não foi nem muito intere/ não foi nem muito triste…
     
Qualquer tipo de pausa não é o que era antigamente… onde a gente não… sabia de nada…
     
Interrogação ? sabe o que que é?
     
Qualquer alongamento :: ou então no:: congelador
     
Comentário do transcritor ((comentário)) ((minúsculas)) ((riso)) ((pigarro))
     
Discurso direto � � ela �vamos? eu tenho que ir a Petrópolis… você vai comigo? eu �tá bom… vamos…�
     
Superposição, simultaneidade de vozes [texto] I: meu tio também… ele faz quadros… [e isso…]
E: [e como é que é?] que… você faz?
     
Números por extenso meia quatro dois… décimo quarto andar…
     
Nomes comuns estrangeiros itálico ah::… o mousse é super fácil…
     
Onomatopéias e siglas caixa alta no que eu me joguei pro lado… ela foi pro outro… eu PUFF… bati na árvore…se uma universidade do porte da PUC…
     
Nomes próprios iniciais maiúsculas mas… eu fui a Petrópolis com uma amiga…
     
Nomes de profissão, cursos em geral minúsculas desenho industrial, agronomia, engenharia etc.

Vale ressaltar que, além dessas convenções, foram estabelecidas como regras os seguintes
procedimentos:

a – A fala da entrevistadora é marcada com os mesmos critérios do informante:
fala da entrevistadora – E: e… você estuda:: que curso?
fala do informante – I: direito… na Cândido Mendes…
b – Não se indica o ponto de exclamação (frase exclamativa)
c – Uso de apóstrofe: somente em d’água.
d – Fáticos: ah, eh, ahn, uhn, tá (tá entendendo? então tá…)
e – Podem-se combinar sinais. Por exemplo: assim::… (alongamento e pausa), não porque::/ (alongamento e
truncamento de sílaba e/ou quebra de seqüência)
f – Não se usa pausa após interrogação.

Observação:
Os exemplos usados são das entrevistas do corpus Discurso & Gramática do Rio de Janeiro.

2. Segunda Validação:

Após a transcrição dos textos, procedeu-se, então, à validação da transcrição feita na primeira etapa. A estratégia usada foi a troca do material entre os bolsistas, devendo cada uma deles ouvir as fitas para checar a fidedignidade das transcrições feitas pelos colegas.

3. Validação Final:

Os textos digitados passaram por uma nova revisão, com consulta à versão original das redações, e com nova escuta do material sonoro, a cargo de bolsistas de iniciação científica e dos professores organizadores. Em vista desse novo controle, a digitação tanto do material escrito quanto do oral procurou representá-los o mais fielmente possível.

III – Análise dos relatos

Finalizada a entrevista, pronta a parte oral e escrita, cada entrevistador produziu um relato de interação. Os relatos de interação registram, portanto, os depoimentos dos entrevistadores a respeito da coleta dos dados.
O objetivo principal desses textos é fornecer aos pesquisadores uma série de informações sobre os aspectos circunstanciais da interação verificada entre a entrevistadora e cada informante do corpus. São informações preliminares que deverão auxiliar na escolha de objetos de pesquisa mais adequados e específicos a cada investigador.

Os relatos de interação caracterizam-se por se constituírem num conjunto genuíno e original de narrativas sobre os procedimentos de coleta de dados lingüísticos, sobre a auto-avaliação e ainda sobre a avaliação do desempenho dos informantes. Representam ao mesmo tempo um registro precioso a respeito do processo de amadurecimento de cada entrevistadora, das condições em que se dá a aprendizagem das atividades de campo, bem como da reflexão acerca do próprio processo interativo.

O registro busca ser fiel, pois esclarece as circunstâncias e condições do contato inicial com o informante, seu nível de disponibilidade e forma comportamental. A partir desses informes, a entrevistadora avalia se ele está agindo com desembaraço, espontaneidade e interesse, ou se, por outro lado, atua com pouca cooperação, ou mesmo com muita resistência.

Uma apreciação rápida dos relatos permite ver que, no geral, o informante coopera mais à medida em que compreende a importância do trabalho passada pela entrevistadora. Entretanto, há sempre o risco de inibição por parte dos entrevistados. O grupo que mais demorou na produção do texto escrito (sem comprometimento, porém, da qualidade do trabalho) foi constituído por informantes universitários, provavelmente por temerem algum tipo de avaliação. Os universitários assim agiram mesmo informados insistentemente de que o material escrito não sofreria qualquer tipo de avaliação destinada à correção.
Os informantes poderiam ser pessoas conhecidas dos entrevistadores ou então pessoas indicadas por terceiros. Tal circunstância explica o fato de alguns registros revelarem maior grau de intimidade nas formas de tratamento entre os participantes da interação. Esse fator, contudo, não parece ter interferido na maior ou menor fluência do entrevistado.

A obtenção da espontaneidade do informante também se configurou como uma meta de trabalho dos entrevistadores que, durante a coleta oral, preocuparam-se em descontraí-lo. Com exceção dos informantes da quarta série, a maioria se sentiu constrangida e intimidada com a presença do gravador. Todavia, ao contrário do ocorrido na coleta escrita, essa intimidação não chegou a prejudicar o desenvolvimento dos textos orais. Na verdade, consideramos que a baixa produção dos textos escritos resulta muito mais da falta de hábito desse tipo de exercício e do receio dos informantes de cometerem erros de grafia do que da circunstância da situação de entrevista.

A seqüência cronológica dos eventos é uma preocupação predominante nos relatos. A título de ilustração, observe-se como se processou a dinâmica da entrevista:

1º – o entrevistador explica ao informante sobre o que trata um item específico do roteiro de coleta;
2º – o informante reflete e diz que está pronto;
3º – o entrevistador liga o gravador;
4º – o informante começa seu depoimento;
5º – o entrevistador interrompe a gravação ou prossegue com outro item do roteiro.

Apresentamos aos estudiosos da língua portuguesa uma obra de consulta em duas partes: o relato do fluxo da entrevista oral e das circunstâncias de entrega da parte escrita e as entrevistas propriamente ditas.
A riqueza deste documento revela-se na contribuição aos futuros projetos do Programa de Estudos do Grupo Discurso & Gramática e aos outros estudiosos do português do Brasil, em virtude da precisão em que mostra situações reais de uso da língua falada e escrita nas cidades pesquisadas.
Nos bancos de dados que aqui apresentamos, pode haver pequenas particularidades na organização de cada corpus, uma vez que a coleta deu-se em cidades distintas, em momentos diversos, com docentes e discentes também distintos. No caso do Rio de Janeiro, por exemplo, com seus 93 informantes, consideramos mais conveniente o desdobramento do corpus em duas seções: a primeira (Rio de Janeiro 1), traz os relatos de interação e os depoimentos dos alunos do ensino superior e médio; a segunda (Rio de Janeiro 2), apresenta os depoimentos dos alunos do ensino fundamental e CA adulto e infantil.

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